A morada interna — um exercício pessoal com Jung

Camila Berteli
12 min readJun 3, 2022

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Home Is Where the Heart Is — Lar é onde o coração está

Frente da casa do Jung — Zurique, Suíça

Neste ano (2022) realizei um sonho, ir visitar a casa do teórico da psicologia Carl Jung em Zurique na Suíça. Foi uma experiência incrível e eu não podia deixar de vir compartilhar o que me motivou a essa visita e também como usar a simbologia que o próprio Jung fez com a sua casa para o nosso desenvolvimento psicológico.

Mas, para começar, preciso voltar lá no início desta história: Uma das coisas que mais me marcou nos últimos 6 meses foi o fato de escolher estar longe do que eu costumava chamar de lar em SP-Brasil. Deixar minha casa, vínculos mais próximos e a rotina, parecia irresistível depois de quase dois anos restrita ao meu apartamento.

Essa decisão de ir, me fez olhar para as minhas relações, as pessoas que convivo, o meu trabalho, o espaço que escolho para ser meu e como tudo isso ocupa um lugar importante na minha saúde mental.

Eu voltei em abril/22 e cada dia percebo que estou ainda decantando tudo o que eu vivi. O que eu posso dizer é que essa tentativa de olhar por um outro ângulo para minha jornada foi importante e essencial.

Foi em meados de 2020 eu me dediquei a tentar racionalizar tudo que aconteceu no ano pandêmico e usei um antigo exercício proposto por Jung, linha da psicologia que me guia há muitos anos. O exercício busca repensar o seu lar interno usando a simbologia da casa, exatamente o que eu precisava naquele momento. Assim como Jung, me reconheci com muito para explorar do meu interior, já que o externo estava mais do que bem explorado depois de tantos dias em casa (risos).

Como a vida real acontece e pouco paramos para observar — é preciso refletir de forma intencional. Este para mim é bom exercício de metalinguagem.

A proposta de Jung não era sobre o lar conhecido e visível e sim aquele espaço escuro e frio que a gente joga o que não quer mais, talvez esse subsolo não deu conta de ficar isolado por mais tempo. Então ele descreveu seu sonho:

“Eu estava numa casa que não conhecia, que tinha dois andares. Era “minha casa”. Encontrei-me no andar superior, onde havia uma espécie de salão mobiliado com belas peças antigas em estilo rococó. Nas paredes pendiam várias pinturas antigas e preciosas. Fiquei imaginando que esta deveria ser a minha casa e pensei: “Nada mal”. Mas então me ocorreu que eu não sabia como era o andar de baixo. Descendo as escadas, cheguei ao andar térreo. Lá tudo era muito mais antigo. Percebi que esta parte da casa deve datar por volta do século XV ou XVI. Os móveis eram medievais, os pisos eram de tijolo vermelho. Em todos os lugares estava bastante escuro. Fui de um cômodo a outro, pensando: “Agora preciso mesmo explorar a casa inteira”. Encontrei uma porta pesada e a abri. Além dela, descobri uma escada de pedra que levava a um porão. Descendo novamente, encontrei-me em uma sala lindamente abobadada que parecia extremamente antiga. Examinando as paredes, descobri camadas de tijolos entre os blocos de pedra comuns e lascas de tijolos na argamassa. Assim que vi isso, soube que as paredes eram da época romana. Meu interesse agora era intenso. Olhei mais de perto para o chão. Era de lajes de pedra e em uma delas descobri um anel. Quando a puxei, a laje de pedra se ergueu e novamente vi uma escada de degraus estreitos de pedra que descia para as profundezas. Estes, também, desci e entrei em uma caverna baixa escavada na rocha. Poeira espessa estava no chão e na poeira havia ossos espalhados e cerâmica quebrada, como restos de uma cultura primitiva. Descobri dois crânios humanos, obviamente muito velhos, e meio desintegrados. Então eu acordei.[1] Jung

Em tempo, Jung levou este sonho a Freud, com quem ele estava trabalhando na época, mas não gostou da leitura que ele fez e então criou a sua própria interpretação — foi ai que os dois foram por caminhos teóricos diferentes, inclusive.

Jung reflete que a nossa casa, por mais simples que ela seja, é mais que um espaço de morada, é ela a representação da psique em si mesmo. Como diz a linda música de Elvis — A casa (lar) é onde o coração está.

Foi ali que um plano nasceu: O de me perder e ir em busca de algo maior do que a segurança física e assim, aprofundar a segurança psicológica.

E por que a simbologia da casa? Nossas casas psíquicas são nossos castelos, nossos santuários. São solo sagrado. Desde criança eu escutava a minha avó dizer que mesmo que a nossa casa fosse muito humilde ela era “limpinha”, aconchegante e fazia todo mundo se sentir amado. Hoje vejo que essas não apenas as características da casa, mas dela mesma.

A fronteira da casa constitui uma fronteira entre o “EU” e o “MUNDO” entre o “EU” e o “OUTRO”. Seus limites são projetados para manter os indesejados do lado de fora e só entra quem tem o meu convite consciente ou inconsciente.

Em minha casa (real e ideal) me sinto segura e guardada. Quando não me sinto, também perco uma parte importante da minha segurança psicológica.

Eu me lembro que uma vez tentaram roubar a casa da minha família e depois disso nós sentimos uma necessidade imensa de nos mudar, era como se essa invasão fizesse com que este símbolo estivesse quebrado.

Muitas vezes vemos desastres climáticos e irresponsabilidades do governo, levarem as casas de milhares de pessoas, o desespero que elas demonstram vai muito além do bem material perdido, há quem diga — Serão indenizados (quando são), mas não é sobre isso, é sobre a conquista da geladeira que foi muito difícil de comprar, é sobre o elo familiar que se dava naquela sala pequena e sobre o feijão na panela que as vezes falta (infelizmente), mas que é suprido por tantas outras coisas.

Para quem tem casa, ou um quarto, ou sua casa é a casa de alguém, para quem não tem, ou aluga ou pega emprestado, para quem se sente mais seguro fora de casa, ou nela, aqui existe uma simbologia importante. Na ausência ou na presença de uma casa, o que você constrói a partir dai é a sua morada psicológica, de raízes ou de fuga.

A casa ou o seu espaço físico elegido é simbolicamente um corpo psíquico estendido, uma manifestação da minha self no mundo. Esse significado simbólico explica muito dos rituais e protocolos culturais em torno de nossas casas e seu status em nossa sociedade. Você já deve ter ouvido: — Quem casa quer casa, ou como é uma grande passo morar junto com alguém, sair da casa dos pais, ou de quem nos criou e acolheu, comprar ou não uma casa, sair do espaço que representa nossa casa e quem nos criou é um ato inesquecível e até necessário.

Uma vez que você se torna um hóspede, permanente ou temporário, na casa de alguém, com alguém, há uma mudança sutil, mas significativa. Você alcança um status de alguém de fora para alguém de dentro.

Jung foi realmente genial ao fazer essa conexão entre o nosso eu e a casa, ele inicia a construção da própria psicologia analítica baseado neste conceito. Então vamos começar a aprofundar neste lugar.

Modelo Psíquico— Jung

Ele propõe que quando mais você desce as várias camadas de sua casa, mais profundo o encontro com o meu próprio inconsciente (na imagem acima — é o caminho para o centro do self) e com imagens e símbolos de um inconsciente que carregamos de uma história ancestral, Jung chamou este tópico de inconsciente coletivo.

De tal forma, começamos em nosso espaço pessoal no andar superior e terminamos nas raízes pré-históricas compartilhadas por toda a humanidade.

Convido você a entrar neste lindo processo que Jung propôs que eu adaptei a minha própria história, um exercício de aprofundamento que me apoiou muito nesta jornada de “Individualização” (pós-em) pandemia e que ainda continua. Um processo de autoconhecimento longo e inacabado, mas que ilumina a jornada e a deixa mais significativa.

Escritório do Jung em sua casa — Zurique, Suíça

Descobrindo sua própria casa arquetípica.

Usando a estrutura simbólica da casa dos sonhos de Jung a ideia é que você se permita visitar este espaços talvez nunca explorados e comece a associar padrões que o Jung identificou para ampliar o nosso autoconhecimento.

Cada cômodo é um símbolo da psíque que ele descrevia como “a representação em pedra dos mais íntimos pensamentos e dos conhecimentos”.

Na entrada da porta principal, Jung colocu uma frase da Collectanea Adagiorum com dizeres em latim:

“Vocatus atque non vocatus Devs aderit”, traduzido como: “Evocado ou não, Deus está presente”.

Jung possui uma das maiores coleções de livros da alquimia da Europa, que estão intactos na casa até hoje. Ele afirmava que saberes ancestrais explicavam padrões de comportamentos, como já explicamos, os arquétipos, que ele descreve como um conjunto de motivações humanas básicas, cada uma com o seu tipo, que tem um próprio conjunto de valores, significados e traços de personalidade.

São infinitas as descrições de arquétipos então, para organizar essa conversa, usaremos a proposta da Carol Person no livro — O herói e o fora da lei que organizou em 12 principais. Abaixo uma imagem que ajuda a entender as características de cada um associada a motivadores.

AGORA VAMOS AO EXERCÍCIO

O nível 1

O primeiro andar de sua casa está relacionado com sua narrativa pessoal. O arquétipo, história ou símbolo que você procura e vivi aqui é aquele que rege sua própria vida pessoal, sua própria narrativa ou jornada de vida até hoje.

Naturalmente você será capaz de identificar múltiplas possibilidades aqui e escolher uma será um desafio. No entanto, selecione apenas um conceito, ideia, arquétipo que esteve presente ao longo de sua vida como o fio condutor. Conhecemos isso também como aquelas características pessoais que reconhecemos em nós ou são compartilhados por aqueles que nos conhecem. É o conhecido e recorrente.

Meu Nível 1: consciência — Eu sempre fui reconhecida por ser astuta, inteligente e muito corajosa. Sou uma mulher que enfrenta, que quando gosta de algo se aprofunda, com intensidade — a que gosta de entender, por isso escolho o arquétipo da Sábia.

O nível 2 do piso térreo da sua casa está relacionado com a família em que você nasceu. Identifique em cada um de seus pais um arquétipo dominante. No caso de sua linha paterna considere: seu pai, seus irmãos, filhos, tios, primos e avô — todos na linha paterna; no caso de sua linha materna considere: sua mãe, irmãs, tias, primas e avó. Portanto, neste nível você deve identificar dois arquétipos, um de cada uma de suas linhas paternas e maternas, respectivamente.

Meu Nível 2: paterno: a pessoa comum, meu pai fazia pouca distinção entre mim e meu irmão, o que foi ótimo em alguns aspectos. Mas, percebo o quanto eu queria demonstrar minha força masculina para ganhar o mundo e pertencer ao mundo dele, atendendo a expectativa que ele depositava em mim; Materno: Criadora, minha mãe é uma artesã incrível, ela é criativa e super inovadora. Sempre construiu caminhos e ganhou espaços.

No nível 3, a adega de sua casa está relacionada com a cultura em que você vive e com a qual se identifica. Isso está aberto à interpretação porque vários fatores complicadores entram em jogo. A cultura em que você cresceu, a cultura em que vive atualmente, grupos culturais e raciais distintos no país em que você vive, considerações de subculturas comunais ou de grupo e assim por diante. Para a maioria de nós haverá uma série de grupos distintos, influências sociais e culturais. Cada um desses grupos encarnará um arquétipo particular. No entanto, por causa do exercício, selecione um arquétipo entre esses grupos com o qual você mais se identifica.

Meu Nível 3: Eu me identifico muito com o Rebelde— tem algo muito forte da minha construção social ligado as oportunidades, por ser uma criação simples e com restrições, sempre fomos incentivados a fazer algo diferente, quebrar os padrões sociais e tentar conquistar mais. Eu carrego isso muito forte, quando sou subversiva (me orgulho disso) conquisto mais do que o esperado.

O nível 4 da caverna sob sua casa está relacionado com a linha ancestral da qual você emerge. Isso pode ser singular ou múltiplo, dependendo de sua ascendência pessoal. Aqui você quer refletir sobre o espírito (ou arquétipo) das “pessoas” das quais você descende.

Nível 4: Eu emerjo de algumas linhagens ancestrais mas, a que mais foi presente na minha vida é a de imigrantes italianos — minha família materna sempre compartilhava que foram imigrantes, que saíram para conquistar uma vida melhor no Brasil, que a família sempre foi muito grande e próxima. Falam alto, é sempre muita gente e muita comida. Aqui eu reconheço o arquétipo herói.

Assim, encontro os seguintes arquétipos vivendo em minha própria psicologia: sabedoria, empatia, pertencimento, rebeldia, liberação e coragem.

Agora é preciso entrar no centro, já que mesmo que muitos me influenciem tenho as centrais. Assim, reduzo minha lista a: rebeldia, sabedoria e herói.

E aqui chegamos a algo importante deste exercício. Que é a a natureza bivalente dos arquétipos. É importante, ao considerar os arquétipos que surgiram para você durante esta aplicação, refletir sobre seus aspectos produtivos e destrutivos de cada um deles. Isso é algo que Jung enfatizou em relação aos arquétipos — sua natureza bivalente. Considerando três dos meus próprios arquétipos, isso é o que vejo:

Rebeldia

Construtivo: tem ideias e busca mudar o status quo, criar novas oportunidades, pensar criativamente, busca explorar oportunidades e novas alternativas.

Destrutivo: pode se frustrar quando as coisas não saem como deveria. Pode estar a maior parte do tempo em estado de luta constante.

Sabedoria

Construtivo: Deseja sempre entender o mundo através do estudo e da autorreflexão, é metódico e detalhista e acredita que a verdade é libertadora. A cada erro, buscam uma nova oportunidade de aprender e fazer diferente.

Destrutivo: Pode precisar de muita informação e demorar para agir. Pode entrar no modo introspectivo e se isolar para refletir à estar com outras pessoas. Podem se cobrar demais por suas ações no passado. Podem ter frieza, ausência de sentimentos e serem interpretados como arrogantes.

Este com certeza foram os aspectos que mais doeram (risos) pois os feedbacks são reais.

Heróina

Produtivo: percebe um problema no mundo e sente um chamado interior para resolver esse problema, sai de sua zona de conforto e, vencendo seus medos, caminha em direção ao desconhecido, é movido pelo desejo de vitória, realização e sucesso.

Destrutivo: Se tornar competitivos, pode ficar na defensiva, ver inimigos em todo lugar; Como tem muita disposição e visão de longo prazo pode se sentir desmotivada quando não tem um desafio ou algo para ser entregue. Pode se sentir responsável por resolver os problemas de todos ao seu redor.

Entendendo seu próprio mito

Jung sugere que quando alguém é conscientemente dos seus pontos, essa ação alcança o seu inconsciente. Portanto, estar ciente das características produtivas e destrutivas do arquétipo é essencial.

Com esse conhecimento, a próxima questão a ser considerada é que história possível poderia ser contada com esses personagens arquetípicos? Isso é, creio eu, o que Jung quer dizer quando nos pede para identificar nosso próprio mito. Este é o “próximo passo” no processo, além do mapeamento clássico de sua história em um mito ou fábula coletiva.

Em outras palavras, os personagens arquetípicos em sua psicologia são personagens no palco de sua vida e sua história de vida pessoal é a história deles, a história que eles contam. Agora as histórias, como sabemos da teoria literária, seguem certas formas típicas (ou em termos junguianos: arquetípicas). Seus arquétipos criam uma estrutura natural na qual sua história pode ser contada, na qual seu mito pode se desdobrar. Esta estrutura tem uma forma e limitação naturais; suas possibilidades não são infinitas.

Entender o que seu mito pode ser é refletir sobre como essa história pode ser ou é, além da especulação, é o negócio de viver esta vida e descobrir qual história emerge. Sua morada interna é um tesouro, conhece-la faz com que a gente seja capaz de curar e inspirar.

Este é um exercício clinico, por isso se por qualquer motivo você sentir que este exercício acessou conteúdos reprimidos ou trouxe sofrimento, busque um profissional da saúde. Como psicóloga estou a disposição.

Aqui uma foto deste dia tão inspirador, eu levei meu exercício na visita e foi realmente muito emocionante — para visitar você pode acessar https://www.cgjunghaus.ch/ — o local é aberto para visita todas as quintas-feiras e umas vez por mês no sábado. A visita é curtinha mas muito inspiradora. A família do Jung ainda moram na casa e por isso lá dentro não pode irar foto.

Ninguém se ilumina imaginando figuras de luz, mas se conscientizando da escuridão”. — Carl Jung

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Camila Berteli

Psicóloga, rebelde, nerd, educadora, freudiana e potterhead. Apaixonada por livros, cinema, arte, filosofia, história e pessoas!